Filme noir
Críticas
Crítica do espetáculo FILME NOIR
JORNAL DO BRASIL
Caderno B
30 de agosto de 2004.
Humor, técnica e mistério
por Macksen Luiz
'Filme noir' demonstra possibilidades do teatro de bonecos como linguagem.
Montagem da Cia. Pequod, Filme noir consolida esse grupo de teatro de animação na sua trajetória de cinco anos. A encenação com bonecos com um estilo cinematográfico - aquele gênero de filmes em que o mistério se confunde com clichês e ganchos narrativos em torno de assassinatos e crimes variados - demonstra as possibilidades de forma expressiva associada, quase exclusivamente, ao público infantil.
O que a montagem propõe é a exploração de um gênero de cinema como elemento dramatúrgico, isto é, a reprodução estilística de seus elementos mais visíveis para brincar com suas fórmulas. Há ainda forte influência dos quadrinhos e do humor mais ingênuo, que oferece contraponto algo crítico às convenções dos filmes noir, além de se utilizar de metaliguagem do próprio teatro de bonecos para se arrematar a trama.
O roteiro de Miguel Vellinho transita por todas essas instâncias narrativas, buscando não apenas recontar histórias, mas também destacar o que há de peculiar nesses quadros de sombras, closes e trilha sonora imperativa. A seqüência dos acontecimentos, com suas versões e pistas desencontradas, às vezes parece carregada demais para as limitações do formato miniaturizado dos ''atores''.
Os desdobramentos do roteiro se interligam pelo tratamento cinematográfico dos cortes, mas há mais entrecho do que a montagem consegue acomodar. O que provoca uma relativa queda de interesse e se reflete na dinâmica cênica. Mas o golpe de teatro no final resolve todos os mistérios e confere a Filme noir um desfecho que não elimina a aura do gênero e valoriza o boneco como linguagem.
O diretor Miguel Vellinho concebeu as cenas em praticáveis móveis, pequenos palcos sobre rodas, onde transcorrem os quadros, que se movimentam num entra-e-sai em ritmo desacelerado. Dessa forma, permitem-se quebras e cortes, planos em perspectiva que acompanham as caminhadas, o abrir-e-fechar de portas ou a fixação de detalhes, como a coreografia de mãos.
O cenário e os adereços de Carlos Alberto Nunes mantêm as cores preta, branca e cinza como referências à tonalidade dos filmes inspiradores e se distribuem por esses pequenos palcos, simulacros ora de telas, ora de quadrinhos, e pela oficina de bonecos, o único quadro que admite outras cores. Os figurinos dos bonecos são perfeitos e a iluminação de Renato Machado tem a sensibilidade de fechar com clima dramático cada cena, apenas se mostrando menos eficiente nas sombras.
Os manipuladores - Mariane Gutierrez, Liliane Xavier, Maria Rego Barros, Márcio Nascimento e Márcio Newlands - se paramentam diante da platéia, no início do espetáculo, e se transformam em silhuetas que se tornam magicamente ausentes - e essa é a qualidade da boa manipulação. Os bonecos ganham vida própria, respiram em cena, interpretam na sua restrita escala de movimentos.
Como a história é narrada, os manipuladores somente emitem alguns sons - respiração, muxoxos -, nem sempre muito variados e um tanto exagerados. A sua técnica, no entanto, se manifesta em vários momentos, como nas três versões do número da cantora e quando o boneco percebe que está sendo manipulado.
A confecção dos bonecos, por Maria Rego Barros, Márcio Newlands e Miguel Vellinho, reproduz nos rostos bem talhados e em brincadeiras bem achadas - os braços múltiplos e o pescoço de mola - o melhor desenho deste Filme noir, um jogo narrativo articulado com bom humor e simpáticos ''intérpretes''.
Crítica do espetáculo FILME NOIR
TRIBUNA DA IMPRENSA
Caderno Bis
2 de novembro de 2004.
Bonecos protagonizam suspense
por Lionel Fischer
Criada em 1999, a Cia. PeQuod, especializada em Teatro de Bonecos, já levou à cena "Sangue bom", "Noite feliz - Um Auto de Natal" e "O velho da horta". Agora, o grupo chega à sua quarta produção, "Filme noir", em cartaz no Teatro Gláucio Gill. Miguel Vellinho assina o roteiro e a direção, estando o elenco de atores-manipuladores formado por Mariane Gutierrez, Liliane Xavier, Maria Rego Barros, Márcio Nascimento e Márcio Newlands.
"Filme noir" tem um enredo que poderia ter motivado um daqueles filmes criminais norte-americanos, sombrios e expressionistas, que tanto sucesso fizeram entre os anos 40 e 60. Veronika de Vitta, uma cantora de jazz, procura o fracassado detetive Race, alegando estar sendo perseguida.
Durante a investigação, Race chega à conclusão de que também está sendo perseguido, ainda que por razões obscuras. Um crime motiva a trama, o assassinato de Amadeo Pino, dono do Perdid'os, cabaré onde Veronika se exibe. Ela é uma das suspeitas, assim como o irmão do falecido, Guido Pino, o barman etc.
Mas ainda que o enredo nada tenha de original, a originalidade se faz presente em quase todas as soluções encontradas pela direção para materializar a narrativa. Algumas, por sinal, muito divertidas, como as passagens em que Veronika canta - só achamos que elas poderiam ser em menor número, pois com as repetições a inventiva coreografia vai perdendo o impacto. Também julgamos um tanto excessivas as idas e vindas no tempo, pois isto implica em alterações cenográficas que ralentam um pouco o desenrolar da trama.
De qualquer forma, "Filme noir" é uma experiência muito bem-sucedida, que merece ser prestigiada de forma incondicional pelo público, e cujo sucesso deve ser compartilhado entre todos os profissionais que dela participam. A começar pelo elenco, irrepreensível tanto em termos interpretativos como no tocante à manipulação dos bonecos. E a mesma eficiência se faz presente no trabalho da equipe técnica.
Carlos Alberto Nunes responde por cenário e adereços maravilhosos, fundamentais para o estabelecimento dos múltiplos climas propostos. Também são impecáveis os figurinos dos atores e dos bonecos criados por Kika de Medina, cabendo ainda destacar a excelente trilha sonora de Maurício Durão, a sombria iluminação de Renato Machado, as divertidas coreografias de Claudia Radusewski e a locução de Renato Peres. Sem esquecer, naturalmente, os criadores dos expressivos bonecos: Maria Rego Barros, Márcio Newlands e Miguel Vellinho.
Crítica do espetáculo FILME NOIR
CARTA MAIOR (on line)
Exercícios de intersecção
por Vany Paiva
Funcionando como exemplar exercício de estilo, o espetáculo Filme Noir tem como grande mérito o abuso da criatividade visual em prol da aproximação entre clássico e pop.
O assunto da moda entre intelectuais, artistas e suplementos culturais diz respeito às misturas. Misturas nas artes, nos conceitos, nos gêneros. Aglutinações consentidas entre estilos, linguagens e texturas ganham status de condição primeira para a criação. A palavra multiplicidade torna-se, além do senso comum, um tipo de comportamento que permite adaptações e incorporações de toda ordem no âmbito das artes. Para Arnaldo Antunes, somos Tribalistas; para Caetano, somos Tropicalistas; Marinetti decretou-nos Futuristas, enquanto Oswald batizou-nos de Antropofágicos.Separados somente talvez pelo tempo, todos têm em comum a noção de mistura de referências como elemento fundamental para a maturidade do pensamento contemporâneo.
Seguindo esta mesma linha conceitual que costura a miscelânea entre idéias e modos de fazer, a Cia Pequod de Teatro de Animação apresenta o espetáculo Filme Noir, em cartaz no Espaço SESC (RJ) até 05 de setembro[2004]. O título da peça já dá pistas da tentativa de integração entre estilos distintos num só canal. Nesta interseção de linguagens, a primeira fusão surge na concepção original de um teatro de bonecos para adultos, resultando na curiosa expressão “teatro de animação”. A segunda, parte da integração temática e formal entre artes outrora estanques: cinema e teatro.
Em Filme Noir, o diretor Miguel Vellinho conta a história do fracassado detetive Race que se depara com uma cliente que jura estar sendo perseguida. Ela é Veronika de Vitta, cantora de um clube de jazz e uma boneca muito sexy. Durante a investigação, Race conclui que também está sendo perseguido. Tudo seria absolutamente banal senão tivesse como principal inspiração estética o cinema noir.
Criada pelos críticos de cinema franceses para destacar certas particularidades temáticas e visuais, a expressão noir sintetiza um visual expressionista, carregado em luz e sombra, preto e branco. Nos roteiros há sempre um clima de corrupção, desconfiança e ansiedade. Detetives particulares, policiais, assassinos, mulheres fatais, lindas e perigosas, integram o quadro de personagens. Flashbacks e voice-over surgem como recursos narrativos que conduzem a trama. Nas palavras de Charles Highan e Joel Greenberg no livro Hollywood in the fourties, o cinema noir mostrava “um mundo de trevas e violência e sobretudo sombra, sobre sombra, sobre sombra...”
Reprodução de movimentos de câmera e iluminação em preto-e-branco reforçam a sensação de filme no palco.
Antes determinando um certo estilo cinematográfico, tais elementos são, agora, tornados por empréstimo para recriar a cena teatral de Vellinho. No entanto, ao contrário dos clássicos filmes, a peça revela ao público seu lado farsesco, assumindo sua porção encenada e, por isso, forjada da realidade. É cinema representado teatral e conscientemente. Por isso, para o público desatento a esta questão, o desfecho do espetáculo talvez soe um tanto inverossímil. Desgarrada da Lógica narrativa que antes sustentava a credulidade da história, a peça ganha contornos surreais no exato momento em que se assume como representação. Na verdade, o diretor parece indicar que a história é tão manipulada quanto seus próprios bonecos/personagens.
Talvez por isso a peça seja ainda mais interessante quando observada pela ótica da transposição visual. Para recriar os espaços que reforçam os charmosos estereótipos formais do estilo noir, a direção teve tarefas complexas como reproduzir no teatro o efeito dos enquadramentos e movimentos de câmeras observados no cinema. A iluminação traduz o clima sombrio da trama, exigindo inclusive soluções inusitadas como a eliminação do filamento amarelo das lâmpadas para conferir a tonalidade branca em todas as cenas.
Por tudo isso, o resultado é plástico.
Chegando a funcionar em alguns momentos como exercício de forma, Filme Noir tem como grande mérito o uso e abuso da criatividade visual em prol da aproximação entre a arte clássica e cultura pop contemporânea. Seja na opção pelo trabalho com bonecos para adultos, seja no estilo cinematográfico escolhido para a recriação teatral, a peça ainda transita entre os cortes secos das histórias em quadrinhos e o cinismo inteligente das comédias assumidas. As cenas em que Veronika De Vitta executa os versos de It’s oh so quiet, na voz de Betty Hutton, são momentos em que esquecemos a artificialidade dos bonecos e acreditamos que aquela é uma atriz e tanto.