Artigo publicado em: SCHOLLHAMMER, Karl Eric (Org.). Henrik Ibsen no Brasil. Rio de Janeiro: PUC-Rio/7Letras, 2008. pp: 91-9.
Antecedentes

Para que se entenda quais são as linhas de criação da Cia. PeQuod – Teatro de Animação, na qual atuo como diretor artístico desde sua criação, em 1999, e como e por que chegamos a Ibsen, faz-se necessário, em primeiro lugar, falar um pouco sobre a trajetória do grupo.

Em Sangue Bom, primeira produção da PeQuod, buscávamos uma reavaliação do espaço cênico, o qual julgávamos subaproveitado por quem fazia Teatro de Animação. Uma das minhas maiores questões, na época, era desvendar o porquê de se limitar o espaço cênico a um balcão ou a uma empanada cuja pouca intimidade com o restante do palco já era visível antes mesmo do início do espetáculo. Essa tímida ocupação da caixa cênica, subestimada em suas potencialidades, era e ainda é minha maior briga. Sangue Bom nasceu, portanto, de um desejo de se utilizar o palco como um todo, sendo que outras proposições também se estabeleceram desde o início, como a ausência de diálogos durante todo o espetáculo e o desafio de utilizar apenas a técnica da manipulação direta para contar uma história com início, meio e fim – nas duas experiências anteriores em que trabalhei com essa técnica, os espetáculos se dividiam em quadros ou esquetes. Sobre esse tripé se apoiou a criação de Sangue Bom.

Nesse estudo, com duração de pouco mais de um ano, outro elemento surgido no meio do caminho trouxe para a cena uma possibilidade bastante interessante; mais que isso: serviu-nos como uma primeira investigação sobre os procedimentos cênicos que poderíamos desenvolver em trabalhos futuros. No momento em que instalamos rodízios sob os balcões que serviam de palco para os bonecos, a cena ganhou uma dinâmica totalmente diferente do que estávamos acostumados a ver no Teatro de Animação. Seus deslocamentos, suaves e contínuos, sugeriram algo próximo aos movimentos de câmera do cinema, como o travelling, normalmente realizado a partir do deslizamento da câmera sobre trilhos. Agora, nós não apenas manipulávamos os bonecos, mas também seu suporte cênico.

Essa aproximação da linguagem cinematográfica com o Teatro de Animação, por sua vez, fez necessária a busca por uma maior agilidade cênica. Por utilizarmos toda a extensão do palco, precisamos duplicar os bonecos, para imprimirmos uma certa continuidade na cena. Um exemplo disso é a cena em que o vampiro tenta invadir o castelo onde vive uma jovem solitária. Em um primeiro momento, a platéia vê o interior da residência, onde sua moradora prepara-se para dormir. Na janela do quarto, avista-se o vampiro à espreita, a observar todos os passos da moça. Em outro ponto do palco, é exibido o exterior do castelo, de modo que o público possa acompanhar o vampiro em suas tentativas desastradas de entrar no aposento da mocinha. Para que isso seja possível, dois bonecos idênticos do mesmo personagem são manipulados em cena. Esse corte e mudança de plano sugeriram-nos uma proximidade com os processos de edição utilizados no cinema.

À medida que criávamos o espetáculo, verificávamos que outras tantas aproximações com a sétima arte poderiam ser exploradas. Sangue Bom acabou por não esgotar essa pesquisa, retomada de forma mais intensa em nossa quarta montagem, Filme Noir, estreada em 2004.

Em Filme Noir percebe-se, já pelo título, que o nosso namoro com o Cinema tornou-se um casamento, uma vez que buscamos em um subgênero dos filmes policiais norte-americanos de meados do século XX a matéria-prima para a criação do espetáculo. Desta vez, a gramática cinematográfica abriu dois novos caminhos para o Teatro de Animação. Um deles foi a maleabilidade da questão do tempo, pois flashbacks foram usados como recursos narrativos, a fim de distinguir os três tempos em que se passa a história: o presente, o passado conhecido e as hipóteses para o passado desconhecido – nada mais natural para uma trama sobre um detetive encarregado de desvendar um crime. E o outro recurso típico do noir que enriqueceu a montagem foi a narração em off.

Esse espetáculo significou para a PeQuod um fechamento de ciclo, pois tal retorno ao estudo dos elementos cinematográficos em cena contou com requintes que não poderíamos ter utilizado em 1999, quando da estréia de Sangue Bom. Com uma pesquisa rigorosa em todos os níveis da montagem, conseguimos recriar uma época não muito distante de nós – os anos 1940 –, com minúcias que só mesmo um trabalho continuado poderia proporcionar. Nada se comparou em dificuldade, porém, ao trabalho de adequação da luz, que deveria recriar uma dramaticidade própria do cinema em preto-e-branco, ainda que utilizássemos os refletores comuns do teatro. A complexidade estava em eliminar o tom amarelado das lâmpadas incandescentes. Para isso, realizamos um estudo sobre filtros de luz que pudessem eliminar essa indesejada tonalidade natural. O resultado levou nosso iluminador, Renato Machado, a ganhar o Prêmio Shell de Teatro daquele ano, no Rio de Janeiro, um feito e tanto não apenas para a PeQuod, mas para o Teatro de Animação como um todo, geralmente ignorado pelas grandes premiações.

Infelizmente, não posso contar muito mais sobre Filme Noir, a fim de preservar as surpresas que ele guarda para quem o assiste. Como todos os nossos espetáculos estão em repertório, o leitor que não assistiu a Filme Noir ainda tem chance de vê-lo. No entanto, cabe ainda dizer que a peça, em termos de linguagem, tangenciou-nos para outras margens ao afastar-nos dos tons figurativos de nossas primeiras montagens e, assim, abriu um novo campo para outras explorações. É importante deixar claro que todos os nossos processos de trabalho buscam, sobretudo, a abertura de novos territórios para onde o Teatro de Animação possa se deslocar e pelos quais tenha como evoluir. Muito mais que pensar o que fazer com o Teatro de bonecos é refletir sobre sua comunicação com o público de hoje. Além disso, é preciso ressaltar também que optamos pela dura tarefa de se fazer Teatro de Animação para adultos, o que talvez já tenha ficado claro por conta das escolhas do nosso repertório. Nossos referenciais temáticos e apropriações se deram, até o momento, através de um universo que a criança ainda não atinge ou para o qual não está preparada intelectualmente. Assim, com esta missão, temos tentado, um espetáculo após o outro, despertar a criança que há em cada adulto, sem o abandono de todo o seu arcabouço intelectual acumulado ao longo da vida.

Depois de um projeto tão festejado como foi Filme Noir, perguntei-me o que poderia vir em seguida. Por onde nossa exploração se daria agora? O que representaria um verdadeiro e novo desafio? Como não cair na armadilha fácil da “linguagem própria”, que só nos faria andar em círculos? Para onde a PeQuod poderia caminhar a partir de então?

O uso da metalinguagem na cena final de Filme Noir, em que atores e bonecos contracenavam em pé de igualdade, abriu-nos um novo caminho, muito rico em possibilidades, mas que somente o texto de um grande autor poderia sustentar. Ao longo de um ano, essa questão rondou meus pensamentos, até eu me dar conta de que em 2006 teríamos uma data redonda para celebrar a importância do trabalho de Henrik Ibsen: os cem anos de sua morte. Assim, fui imediatamente remetido àquela pequena jóia bruta que é Peer Gynt, peça de caráter fantástico e fabular do autor norueguês, com suas inúmeras paisagens e diversas tramas episódicas. Um ambiente, a meu ver, perfeito para um espetáculo com bonecos. Porém, obviamente, nada é tão simples assim.
O processo

Em setembro de 2005, iniciamos o projeto de encenar Peer Gynt. A decisão foi feita a partir de inúmeras leituras da peça feitas no início do mesmo ano. Com o naipe de atores de diferentes personalidades e “temperaturas” que compõem hoje a PeQuod, verifiquei que era possível aproximar do elenco aqueles personagens de Ibsen. Entre setembro e dezembro, debruçamo-nos sobre o texto e fomos extraindo dali os caminhos que ditariam a nossa encenação. Assim fui percebendo a riqueza e grandiosidade dessa obra, que poderia facilmente nos engolir e nos levar a realizar uma montagem equivocada e distante de Ibsen. Ora, uma peça repleta de trolls e elementos da natureza como personagens faz com que seja irresistivelmente tentador partir para a investigação das mil possibilidades de confecção desses mesmos papéis. Surgiu-nos, por exemplo, uma infinidade de maneiras de se corporificar os trolls, o que sinalizou um processo de criação dos bonecos totalmente diferente de tudo que já havíamos feito. Não há como resistir às imagens antigas dos trolls feitas por Erik Werenskiold nas páginas do Askeladden e a dali projetar bonecos que certamente dariam à montagem o caráter fabular e fantástico que Peer Gynt tem. Só que, com o avançar das leituras, uma outra concepção de Peer Gynt foi sendo desenhada. Quanto mais líamos o texto, mais víamos o protagonista não como um simples mau-caráter, um malandro, um sujeito sem moral, mas como um esboço mais que atual do esfacelamento do sujeito. Esboço porque, escrita em 1867, a peça de Ibsen avistava de muito longe a modernidade que viria consolidar a crise de identidade do homem atual. Esta observação é endossada pela professora Tereza Menezes em um dos poucos trabalhos publicados no Brasil sobre o autor, Ibsen e o novo sujeito da modernidade, livro em que ela anuncia, logo no início, que “o ser humano complexo e dilacerado, característico do século XXI, vem sendo gestado desde o final do século XIX”. Freud ainda não havia transposto para o papel suas principais conclusões a respeito da identidade do sujeito e o conceito de inconsciente. Pareceu-nos possível, portanto, atualizar Peer Gynt sem grandes esforços de adaptação. A chave estava na encenação e em alguns generosos cortes no texto original.

A leitura do pequeno livro A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall, foi outro aporte de extremo valor nessa atualização, por ter-nos dado os instrumentos necessários para ler e entender o personagem Peer Gynt como uma identidade fragmentada. O avanço da discussão nessa direção enterrou de vez a idéia de construirmos os nossos próprios trollzinhos. Havia algo misterioso que Ibsen nos revelava e que vislumbrávamos como um caminho interessante para a trajetória da PeQuod. Também foi soterrada de vez a hipótese bastante ingênua de se fazer o espetáculo apenas com bonecos, pois percebíamos que, para desenvolver cenicamente a idéia de um Peer Gynt em crise, os atores faziam-se mais que necessários. Até porque a complexidade e a profundidade de certas passagens da peça exigiam algo que os bonecos não conseguiriam alcançar. A esta conclusão se chegou com absoluta tranqüilidade. Tenho total ciência de que os bonecos, por mais expressividade que possam revelar, apresentam também inúmeras limitações. Sei de sua eficiência como objeto cênico de alta comunicabilidade, mas, neste caso, percebi também suas deficiências para tratar de um texto de um autor com uma gama de subjetividades bastante considerável. E como falávamos de descentramento do sujeito, foi natural bipartir o personagem principal entre ator e boneco, sendo que ambos representariam a materialização da falta de unidade do sujeito. O boneco passa, nesse sentido, a ganhar o status de máscara social do indivíduo, ora acionada pelos manipuladores, ora não. Esta divisão ocorreu também com os personagens secundários. Uma das inversões mais interessantes que se deram a partir dessa decisão foi justamente na cena dos trolls. Quando Peer Gynt pede a mão da filha do rei dos trolls, ele vacila ao ser informado de que precisará abdicar de sua condição humana para tornar-se um troll, mas o que se vê em cena são atores interpretando trolls, enquanto um boneco representa o humano Peer Gynt. Ou seja: humanos se fazem passar por entes fantásticos e um objeto “pensa” em abandonar sua pretensa natureza humana para tornar-se troll também.

Idealizar uma cena feita exclusivamente para bonecos é conceber todos os cenários e objetos cênicos na mesma escala destes. Nossos bonecos geralmente têm de 60cm a 70cm, o que equivale a uma proporção de três cabeças e meia, padrão utilizado pela maioria dos profissionais de desenho animado. E pensar uma cena com atores, por sua vez, é recorrer à velha máxima de que “o homem é a medida de todas as coisas”. Portanto, criar uma cena com atores e bonecos foi uma equação de extrema complexidade que se impôs durante a concepção do espetáculo. De que forma se daria esse diálogo? Seria possível e cabível naquele caso? Quais as chances de se gerar algo verdadeiro e digno?

Lembro-me de ter assistido a um grande número de espetáculos que mesclavam atores e bonecos, mas não me recordo de nenhum deles ter lidado a sério com a existência de duas proporcionalidades em um mesmo espaço. Passa-se ao largo de uma discussão fundamental para quem trabalha com essa linguagem. Identificamos, portanto, a chance de dar uma contribuição estudada a respeito. No nosso caso, buscamos soluções simples para resolver a questão. Uma saída foi trabalhar com a perspectiva da platéia. Toda vez que um ator dialogava em cena com um boneco, o primeiro se posicionava mais próximo ao público do que o segundo, de modo a sugerir que a figura do boneco era menor apenas por estar mais distante.

Nas cenas desse tipo, outra discussão que se impôs foi o abismo que há entre a expressão do ator, dotada de infinitas possibilidades, e a do boneco, estática. Como evitar que essa diferença tornasse patéticos os diálogos entre um e outro? Neste caso, a solução passa por uma simplificação da figura do ator, sempre de costas para a platéia quando se dirigia aos bonecos, o que anulava suas expressões faciais e impedia que ele “roubasse” o foco da ação. Para esta anulação da figura individualizada do ator, recorremos também, dependendo da cena ou do personagem em questão, a capuzes, panos e óculos para velar suas expressões.

Assim, com precisão cirúrgica, partimos para o estabelecimento de uma cena totalmente descomprometida com qualquer aspecto realista. O que seria apresentado deveria ser um Peer Gynt a la PeQuod. Utilizaríamos a peça para expandir um pouco mais os limites do Teatro de Animação e atualizar o público quanto às inúmeras possibilidades desta arte. Exemplo disso é a cena em que aparece o personagem A Curva . Em determinado ponto da trajetória de Peer Gynt, ele se depara com uma curva que o obriga a desviar seu caminho, chegando a provocá-lo até a confrontação física. Ora, como trazer para a cena a figura de uma curva? Como materializar uma personagem desprovida de elementos concretos, mas que entra em ação e tem falas? E como manter o impacto que essa cena tem no texto original, a ponto de ela revelar dados importantes sobre o protagonista? A solução foi elevar um ator a três metros do chão e, lá no alto, de cabeça para baixo, ele manipulava um conhecido elemento usado em ginástica olímpica, a fita. Manejada de cima para baixo, ela criava formas de grande impacto visual, com seu vermelho vivo ressaltado pela iluminação. Aquelas curvas efêmeras, ágeis, abstratas e como que soltas no espaço materializavam, acredito eu, o problema proposto por Ibsen.

A proposta, porém, ia além da questão visual. Ora, o que tínhamos ali era uma cena de manipulação de bonecos, de um objeto animado. O encanto que a cena possui está na atualização do tema “boneco que abandonou de vez seu caráter antropomórfico”. Não que isto seja uma novidade, mas percebo que ali houve uma aglutinação dos antigos propósitos da PeQuod com os novos que foram se impondo durante o processo de ensaios e que, agora, se estabelece como parâmetro para investigações futuras. Esta desmaterialização do boneco levou a um desejo de que, em algum momento, nós abríssemos mão do boneco que representava Peer Gynt no espetáculo. Pensávamos numa desconstrução do boneco em cena, de modo que ele, no final da peça, desaparecesse totalmente, ainda que o personagem fosse mantido. Essa proposta acabou não indo adiante, mas entrou na gaveta de minhas próximas especulações.

A solução para A Curva, com um ator pendente do teto, é um momento marcante do espetáculo, mas não destoa do restante da montagem. Em nosso Peer Gynt, estabelecemos o espaço cênico como um palco às avessas, em que toda a maquinaria própria do teatro é revelada. A amarração final deste conceito se dá através da utilização dos pesos de lastros dos antigos teatros, que serviam para erguer e baixar cenários. Assim, todos os elementos do nosso espetáculo entram e saem de cena por meio desses pesos, todos visíveis e presos ao teto. São pequenos sacos de pano estilizados de onde saem os bonecos, os adereços e elementos de grande porte, como o mar que quase engole o protagonista no quinto ato. Com uma maquinaria própria, construída especialmente para esta montagem, tínhamos também a possibilidade de fazer com que os atores fossem suspensos, sendo que, em vários momentos, o próprio texto de Ibsen sugeria isso. O exemplo mais claro é quando Peer deixa sua mãe presa no telhado de um moinho, logo no primeiro ato da peça.

Como se tudo isso ainda fosse pouco, o espetáculo também abandona o fundo negro que acompanhou-nos em todas as montagens anteriores da PeQuod. Tradicionalmente, em Teatro de Animação, o uso do pano preto facilita a ocultação dos elementos de cena, como bonecos e adereços, e até mesmo eventuais problemas de manipulação. Pois decidimos nos jogar em um ambiente totalmente branco, com toda a manipulação literalmente às claras. Ao contrário de nossa peça anterior, Filme Noir, o cenário e o figurino dos manipuladores agora tinham tons claros, enquanto os bonecos apresentavam tons escuros. Uma leitura mais livre pode sugerir que o branco está ali não só a representar a região extremamente fria onde se passa a maior parte da história, mas também a funcionar como uma metáfora redimensionada do personagem-título da peça: uma tela branca e vazia pronta para ser preenchida com cores que apenas atores e bonecos são capazes de dar.

Por questões de ordens adversas a nossa vontade – mas que mais tarde transformaram-se em um ponto crucial para o êxito da montagem –, estrearíamos em um teatro de arena, definição que acabou por nos forçar a abandonar duas ou três idéias de cenários que havíamos estabelecido no início do processo. Era hora de deixar de lado também os balcões que tinham servido de suporte para os bonecos desde o início do nosso trabalho em Sangue Bom. Meu medo maior não estava nessa mudança radical, mas na hipótese de retornar a uma cena estática, aquela com a qual eu havia rompido ao instalar rodízios sob os balcões. Estabelecido que nosso palco representaria um palco às avessas, tratei de definir que os atores/manipuladores seriam também como que contra-regras, agentes da organização da representação teatral que assumiriam, em determinados momentos, os papéis de atores e manipuladores, procedimento bastante recorrente no trabalho da PeQuod. Neste espaço em construção e em definição, escadas de metal foram usadas primeiramente como os objetos utilitários que são, indispensáveis aos contra-regras na finalização da cenografia, realizada na presença do público quando de sua entrada no teatro. Ao se iniciar o espetáculo, as escadas são deitadas e suspensas pelos mesmos encordoamentos que sustentam os sacos de lastro. Na horizontal e com pequenas adaptações em seus degraus, elas assumem o posto dos balcões, possibilitando inúmeras e inesperadas configurações que são armadas aos olhos da platéia. Elas poderiam representar encostas íngremes, a casa fria e carcomida da velha Aase, a proa do navio que traz Peer de volta a sua terra, entre tantas outras coisas. Com isso, todo o jogo cênico se dá às claras, sem segredos de coxia, sem que de forma alguma o figurativismo das montagens anteriores da PeQuod, que tanto já nos encantaram, retornasse à cena.

Não posso dizer que este mesmo figurativismo tenha sido abandonado de vez pela PeQuod, mas estou certo de que iniciamos uma nova etapa no nosso trabalho. Talvez haja, a partir de agora, um outro tipo de figurativismo, aquele que possibilita, por exemplo, a materialização de uma Curva por meio de uma fita. O que se pode dizer em relação a Peer Gynt, especificamente, é que ali há uma discussão muito mais interessante do que rechear a cena de todos os ambientes e adereços pelos quais passa o protagonista em sua trajetória. Esta assepsia se fez necessária para desobstruir a cena e deixar mais clara esta “revisão” de um Peer Gynt descentrado. Talvez um Peer Gynt com a cara dos nossos tempos.

Pouco tempo depois da estréia, ao ler alguns textos da professora Béatrice Picon-Vallin, recentemente traduzidos para o português, recebi como resposta às indagações acima uma pequena citação de Nikolaj Tarabukin, historiador e profundo conhecedor do trabalho de Meyerhold. O texto é de 1931:

“Uma peça, dita por atores mesmo maquiados e com figurinos sobre um palco, não se torna necessariamente um espetáculo. Essas pretensas ‘encenações’ devem ser relacionadas à arte da declamação, não à do espetáculo. Um espetáculo é, antes de tudo, algo para ser olhado. E o teatro é antes de mais nada uma arte figurativa. A própria palavra espetáculo vem do latim spectare, que significa olhar. E, embora o vocábulo teatral possua um certo número de termos que caracterizam a especificidade da arte cênica, é raro que a idéia que o sustenta encontre uma encarnação concreta. A começar pela expressão pôr em cena. Monta-se uma peça. O cartaz exibe o nome do autor da encenação. Entretanto, na maior parte das vezes, sobre o palco, nós ouvimos uma peça, mas a encenação dela, quer dizer sua configuração composicional e imagética, nós não vemos.”

Percebo nestas palavras o quanto ainda nos falta avançar em termos de visualidade. E o quanto nos equivocamos, às vezes, em prol de uma cena dita “contemporânea”, em que o esvaziamento desta mesma cena não pode, de modo algum, ser confundido com empobrecimento das idéias colocadas em cena. É para aí que aponta o caminho da PeQuod. Um caminho que transita pelas inúmeras possibilidades imagéticas que o Teatro pode ter. E que a harmonia de meios encontrada em Peer Gynt seja o início de uma nova jornada para nós, que agora não apenas manipulamos nossos bonecos, mas também a imaginação da platéia.
BIBLIOGRAFIA:

BRADBURY, Malcolm, O mundo moderno. Companhia da Letras, São Paulo, 1989.
GASSNER, John, Mestres do Teatro II. Editora Perspectiva, São Paulo, 1980.
IBSEN, Henrik, Peer Gynt. GF-Flammarion, Paris, 1994.
IBSEN, Henrik, Teatro completo. Aguilar Ediciones, Madrid, 1952.
MENEZES, Tereza, Ibsen e o novo sujeito da modernidade. Editora Perspectiva, São Paulo, 2006.
PICON-VALLIN, Béatrice, A Arte do Teatro entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea. Letra e Imagem/Teatro do Pequeno Gesto, Rio de Janeiro, 2006.
PAVIS, Patrice, Dicionário de Teatro. Editora Perspectiva, São Paulo, 2003.

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